UMA JOIA DA ARQUITETURA MODERNA NO CAOS URBANO DE ARACAJU
O revirar de caixas num dia enfadonho e sem compromissos, fez-me encontrar, entre fotos antigas e outras lembranças, um cartão postal que me remeteu de imediato à minha infância, empinando arraias nas areias brancas do Morro do Bonfim. Tempo bom aquele, do pião, da pembarra, da bola de gude e das peladas no Campo do Tobias.
O areal deu lugar à planície, abrindo caminho para a modernidade, tão bem representada pôr uma imponente e inovadora edificação: a Estação Rodoviária Governador Luiz Garcia, palco de tantos encontros e despedidas, lágrimas e risos, começo e fim de tantas histórias, caminho obrigatório de milhares de pessoas ainda nos dias de hoje.
Olhar aquela imagem tão bem guardada por tanto tempo, foi o mote para abordarmos um tema que, diante das atribulações impostas pelo dia a dia, passa despercebido para a grande parte dos habitantes dos grandes centros urbanos. Trata-se da desvinculação cada vez maior entre os cidadãos e o seu patrimônio cultural e histórico, portador de atributos artísticos e depositário de acontecimentos importantes para a brava gente sergipana.
Esse processo pode ser observado não apenas em Aracaju, mas também em outros municípios. A deterioração do patrimônio cultural, ante o olhar indiferente dos transeuntes, que, atarefados pela rotina dos dias, perdem aos poucos a capacidade de perceber o espaço público como lugar de memória, portador de importantes elementos identitários.
A Estação Rodoviária Governador Luiz Garcia, teve sua pedra fundamental assentada no dia 5 de dezembro de 1959, sendo inaugurada em 1962. Foi a primeira grande obra estrutural do governo de Luiz Garcia (1910-2001), iniciada em 31 de janeiro de 1959. Surge após o desmanche do Morro do Bonfim, que abarcava uma imensa área que se estendia entre a Rua de São Cristóvão e a hoje Carlos Burlamaqui, impedindo o desenvolvimento urbano de uma capital cuja população crescia a cada dia.
Projeto de autoria do arquiteto baiano Rafael Grimaldi, a estrutura do prédio é composta por elementos peculiares da renovação conceitual proposta por Oscar Niemeyer, e concretizada dois anos antes com a construção da nova capital do país, Brasília.
Esses elementos inovadores são perfeitamente identificáveis. São altas colunas paralelas revestidas em cerâmica, azulejos com temática regional, grandes vãos em concreto armado, vidraças imensas que permitem o uso da iluminação natural durante a maior parte do dia e propiciam grande visibilidade em seu entorno, e suportes externos que remetem de imediato à concepção brasiliense.
Essa obra peculiar, inédita no Nordeste de então, ao longo de 15 anos torna-se obsoleta, ante o vertiginoso crescimento social e econômico de Sergipe a partir dos anos 60, sendo necessário à construção de um novo terminal rodoviário, na periferia oeste da cidade, que levou o nome do Governador José Rollemberg Leite.
Desde então, a obra pioneira de Garcia passa a ser conhecida popularmente como “rodoviária velha”, iniciando-se um gradativo processo de degradação, provocado pela falta de manutenção e ausência de políticas públicas voltadas para a valorização patrimonial.
Tombada como patrimônio histórico de Sergipe no ano de 2003, o ícone da renovação urbana de Aracaju pede socorro, envolta no burburinho característico dos terminais urbanos, e pelo transito caótico em seu entorno.
Hoje a rodoviária velha é um mosaico composto por bancas de revistas, lanchonetes, lojinhas de importados e similares, placas publicitárias, gambiarras elétricas e hidráulicas expostas, que compõem um quadro em completa desarmonia com a proposta conceitual da construção, escamoteando seus belos detalhes e transformando essa joia da arquitetura modernista em Sergipe em um cortiço comercial encravado em pleno centro da capital.
Submetido ao ritmo vertiginoso da contemporaneidade, os cidadãos carecem de políticas voltadas para a percepção, conhecimento, valorização e consequente apropriação do patrimônio urbano, ações que possibilitariam sua atuação como zeladores e multiplicadores da cultura e história do seu lugar.
É preciso lançar um novo olhar sobre a paisagem cultural, para perceber o que o cotidiano nos ocultou, e dessa forma contribuir para que nossos bens históricos não se tornem apenas lembranças gravadas em cartão postal.
Carlos BrazCarlos Braz – Carlos Braz é sergipano, natural de Aracaju. Tem 61 anos ,é Bacharel em Museologia, formado pela UFS, e acadêmico de Licenciatura em História também na UFS. É membro da Associação Sergipana de Imprensa (ASI), já publicou artigos e contos no semanário Cinform, e foi autor dos projetos expositivos ” Cangaço: por dentro do emborná e na ponta do punhá” (Museu Histórico de Sergipe), “Folguedos de Sergipe: conhecer, valorizar e preservar” (Museu Histórico de Sergipe e Museu Afrobrasileiro de Sergipe), “Moedas e cédulas brasileiras: a história na palma da mão”(Museu Histórico de Sergipe),” Vida e obra de Luiz Antonio Barreto” (Palácio Museu Olímpio Campos), e mentor do projeto Afrodescendencia e cidadania.
FONTE: http://www.93noticias.com.br/2017/05/19/uma-joia-da-arquitetura-moderna-no-caos-urbano-de-aracaju/